Uma defesa do materialismo histórico e da dialética contra um auto-proclamado ''ultra-racionalista''
Alguns textos, de simplicidade ou tecnicidade rigorosa, são ''capazes'' de apresentar o mesmo significado para qualquer pessoa, em qualquer tempo e lugar. Outros, por sua vez, mudam de significado de acordo com o leitor: com o estado emocional deste, suas capacidades intelectuais, seu contexto cultural etc; daí ser possível dizer que o que X significa para mim não é o mesmo que para outro. Creio que obtive uma prova prática disso recentemente. Meu interlocutor — o auto-proclamado ''ultra-racionalista'' do subtítulo —, que presumo ter lido Marx para então criticá-lo, afirma que nossa epistemologia é relativista; que, como as ideias seriam ''frutos das classes'', cairia-se em um subjetivismo que ignora a realidade objetiva, um subjetivismo que precederia a relativização ''pós-moderna'' da razão.
Seu erro já começa ao derivar do pensamento marxista a assertiva ''as ideias são frutos das classes''. Houve um período da história humana — aquele correspondente ao modo de produção comunalista primitivo — em que não havia classes, já que não havia divisão rigorosa dos indivíduos no processo de produção social, devido à propriedade comum dos meios de produção. Pode ter sido um descuido, mas, segundo ele, um marxista diria que nessa época não haveriam ideias. Que erro crasso seria!
De que, então, são as ideias verdadeiramente ''fruto'', segundo a teoria marxista? Das condições materiais de produção da vida:
''Não é a consciência dos homens que determina seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a consciência.'' (Prefácio da contribuição à crítica da economia política)
''A produção de ideias, de representações e da consciência está, a princípio, diretamente vinculada à atividade material e ao intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o intercâmbio espiritual entre os homens aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, etc, de um povo. São os homens os produtores de suas representações, ideias etc, mas os homens reais, atuantes, tal como são condicionados por um certo desenvolvimento das forças produtivas e das relações a elas correspondentes, até chegar às suas mais amplas formações. A consciência nunca pode ser outras coisa que não o ser consciente.'' (A Ideologia Alemã)
Simplificando, a consciência dos homens — a representação que fazem de si mesmos e do mundo — é o reflexo da produção da vida material, pois ''antes de fazer arte, ciência, política ou religião'' é preciso ''comer, beber, vestir-se, ter moradia etc''. O ''direito divino dos reis'' e a ''fidelidade senhorial'' medievais, a ''superioridade aristocrática natural'' da antiguidade e a ''meritocracia'' burguesa são exemplos disso. Marx diz-nos, também, que ''as ideias dominantes em cada época são as ideias da classe dominante'', isto porque a classe dominante é dona dos ''meios de produção espiritual'', mídia, escolas e igrejas, por exemplo, por meio das quais as consciências e opiniões são formadas:
''As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideológica das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que formam a classe dominante possuem, entre outras coisas, também uma consciência e, por conseguinte, pensam; uma vez que dominam como classe e determinam todo o âmbito de um tempo histórico, é evidente que o façam em toda a sua amplitude e, como consequência, também dominem como pensadores, como produtores de ideias, que controlem a produção e a distribuição das ideias de sua época, e que suas ideias sejam, portanto, as ideias dominantes de um tempo.'' (A Ideologia Alemã)
Poderia o meu interlocutor perguntar como as ideias revolucionárias tomam de conta da população, uma vez que coexistem com uma classe dominante que não é a sua; a isto se responde com o materialismo histórico e dialético: as ideias da classe dominante são uma superestrutura que já não possui uma relação harmoniosa com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. A sobrevivência e evolução dessas novas forças e relações só pode ocorrer com a derrubada violenta da superestrutura reacionária, e isto se reflete na formação da consciência revolucionária.
''Relativizas a verdade ao dizer que as ideias são representações que determinada classe faz de si e do mundo!'', grita meu interlocutor, como se Marx ou qualquer marxista houvesse descartado algum(a) discurso/afirmativa como falsa apenas por vir de indivíduo ou grupo com interesses conservadores. Não foi o próprio Marx que refutou os intentos reformistas de Proudhon usando a ciência econômica ''burguesa'' de David Ricardo? Ao acaso não está o próprio O Capital abarrotado de citações dos ditos ''economistas burgueses''? O marxismo é a filosofia da práxis, da ação real, concreta; o caráter de veracidade de qualquer enunciado, para o marxismo, deve-se à sua capacidade de descrever e prever um fenômeno real. Nada há aqui que se possa chamar de ''relativismo'', a não ser que meu interlocutor considere uma desconfiança quanto aos discursos conservadores — que podem conter muito mais de seus próprios interesses que a realidade em si, tal como a teoria do ''fundo de salários'' ou o conjunto da obra dos assim chamados ''neoliberais'', com sua sacralização do mercado e atomização dos indivíduos— como tal.
''O primeiro pressuposto de toda a existência humana, e portanto de toda a história, é que os homens devem estar em condições de ''fazer história''. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato esse é um ato histórico, uma exigência fundamental da história, que tanto hoje como há milênios deve ser cumprido cotidianamente e a cada hora, a fim de manter os homens com vida.'' (A Ideologia Alemã)
Se o ''primeiro fato histórico'' é a ''produção da própria vida material'', segue-se que as leis, a moral, etc, de um povo devem ser reflexos mais ou menos precisos do seu modo de produção da vida material, tal como se apresenta em determinado estágio do desenvolvimento histórico. Que estágio desse desenvolvimento presenciamos hoje? O capitalismo, a sociedade burguesa. O Estado moderno é, portanto, um reflexo das relações burguesas de produção, é o Estado burguês.
Em meados do século XX, vários pensadores ocidentais apontaram o dedo para os marxistas, vangloriando-se do ''welfare state'' e afirmando que o Estado claramente não representava nenhuma classe em especial, mas aglomerava o interesse de todas e na mesma proporção; uma refutação prática do marxismo. Assar Lindbeck, em livro avassaladoramente criticado por Paul. M. Sweezy, afirma que nós, marxistas, não somos capazes de explicar, por exemplo, a enorme redistribuição de renda nas principais potências ocidentais após a 2ª Guerra Mundial.
Pobre Lindbeck! Suas aspirações de constranger esses marxistas-que-não-sabem-nada foram frustradas por um sem-número de análises sobre o reformismo nos países capitalistas ocidentais, sendo a análise do falecido E. J. Hobsbawm, dentre todas, uma das mais interessantes.
Chama ele então à dialética de ''pseudofilosofia'', afirma que nela não reside nenhuma lógica. Que tipo de lógica defende ele, então? Algo como uma lógica formal aristotélica, fixista, incapaz de descrever racionalmente os processos de transformação da realidade, o devir? A dialética tem por base as seguintes leis:
1) Lei da unidade e luta dos contrários: em tudo há unidade dialética, ou seja, ao mesmo tempo união e oposição. A contradição faz parte das coisas.
2) Lei da negação da negação: expressa os princípios do mecanismo de tese, antítese e síntese. A negação da negação não é uma anulação, mas uma superação do conflito em prol da construção de uma nova realidade.
3) Lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa: as mudanças quantitativas vão ocorrendo até que, subitamente, a ocorra uma mudança na própria qualidade daquilo que está mudando, como na mudança de estados físicos da água. Uma consequência disso é que o todo é diferente da era soma das partes.
A transformação dos elementos químicos em compostos, a evolução por meio da seleção natural e as revoluções sociais são exemplos de fenômenos bizarros à lógica formal aristotélica que se tornam plenamente compreensíveis à luz da lógica dialética.